domingo, 22 de dezembro de 2013

Minha vida em prosa

Regressão
Zenóbio Oliveira

O rangido da porteira era uma cantiga de tons nostálgicos, notas de um lamento que ecoavam na alma. Todos os sentidos dominados pelas reminiscências de outras eras, uma regressão hipnótica que me conduzia aos tempos infantes, de intempéries, mas de felicidades. Era como está em outra vida dentro da minha própria existência, numa espécie de anamnese platônica.
A saudade sempre acorda uma lembrança, ou será a lembrança que desperta a saudade, não sei dizer ao certo. Melhor dizer que as duas têm uma relação tautócrona e, ainda que afugentadas pela realidade presente, deixam seus resquícios de melancolia.
Parado ali sobre as ruínas da velha morada, vislumbrando os vultos e as paisagens de um passado intangível se materializando como hologramas nas retinas das minhas recordações.
Vi o velho tamarindo, palco dos concertos harmoniosos dos Pintassilgos e Guriatãs, seus galhos sacudidos pelo vento, a desfolha constante numa chuva de pétalas de suas flores amarelas; as pinheiras com seus frutos polpudos adoçando a vida dos Papa-sebos; a fartura de cajaranas adormecendo os dentes da meninada. As carrapateiras espocando suas amêndoas numa semeação natural como se adivinhasse o inverno chegando para garantir o nascimento de suas carrapateirazinhas. Vi a figura de Vovô Zé Carlos, seus gestos contundentes e sua voz imperativa ralhando dos nossos malfeitos; ainda escutei os mais velhos nos amedrontando com aquelas historias de Lobisomens e Papa-figos.
De volta do passado, o tempo, esse ímpio senhor das vicissitudes, carrasco das minhas ilusões, impugna-me todas as lembranças, constatando que nada mais há alem desse caleidoscópio da memória, que parece acometida dos sintomas de um Alzheimer temporão.  
O tamarindo, as pinheiras, as cajaranas, as carrapateiras nada mais são do que sensações efêmeras desta mente anciã. Hoje até os Papa-sebos são raros e os mitos folclóricos morreram assim como os mais velhos.
Tudo são restos, pedaços de coisas intrometidos nos escombros de minha infância.
E lá estava a banda do meu pinhão de pereiro forjado por Chico LQT. Mais adiante a boléia retorcida e enferrujada da minha caçamba de flandre. Minha roladeira oxidada de lata de Neston, partes carcomidas do moinho de milho e do ferro de engomar, fragmentos de jarros onde minha irmã cultivava suas roseiras nove - horas e seus crótons trinta rapazes e o gogó de um pote onde ainda se via na boca as marcas dos dedos de Madalena.
Não sei o que dói mais: a imaginação reprodutiva daquilo que um dia foi ou a certeza inexorável do que não pode mais ser. E aí vem aquele mergulho na saudade para compreender que ela é mesmo como dizem, tudo o que fica daquilo que não ficou.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Poeta de mão cheia

Severino Lourenço da Silva Pinto

Ou simplesmente

Pinto do Monteiro

Eu comparo esta vida
à curva da letra S:
tem uma ponta que sobe
tem outra ponta que desce
e a volta que dá no meio
nem todo mundo conhece

Esta palavra saudade
conheço desde criança
saudade de amor ausente
não é saudade (é lembrança)
saudade só é saudade
quando morre a esperança.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Poemas da terra

DÉCIMAS PARA O AMOR
Rogaciano Leite

Amar não é expandir-se
Em termos de exaltação,
Sete cores nas palavras,
Coroando a louvação!
Não é a ardente promessa
Que quase sempre professa
Do sentimento o valor!
Não é nos lábios a jura
Que com certeza assegura
A eternidade do Amor!


Não é o vínculo frágil
Da intempestiva paixão,
Que à maneira como surge
Se desfaz no coração!
Como o sopro da tormenta
Que deixa marca violente,
Para depressa partir!
Que tem o sentido breve,
Dura o tempo do interesse,
Pois antes que aparecesse



Já começa a ruir!
Não! Não! O Amor verdadeiro
A mais alto nos conduz,
Por estradas de renúncias
Alcatifadas de luz!
É Árvore generosa
Na gleba do coração!
Na benção da Caridade,
Só dá frutos da Bondade,
Só dá flores do Perdão!

Rimando

NORDESTE DESAJUDADO
Jessier Quirino

...E é nesse nordeste tão desajudado
Que eu jangadeio com meu versejar
Vejo um violeiro no seu pontiar
Musando uma musa que já deu nos calo
Enxergo um canteiro de crista de galo
Simiantemente a do dito animá
De folha de sonho a pé sossego
De tudo se encontra por esses quintá
E embora a dureza castigue lá fora
Se encontra um matuto sem muita demora
Que empresta o cachimbo pra se maginar.



Empresta o cachimbo pra se maginar
Nos antigamentes daquele costado
Com a sonolênça dum bucho armoçado
Quebrando o palito da tal digestão
Se alembra da dona do seu coração
Que a lágrima era doce, que a voz era pura
A sua figura muda de figura
Pede licencinha a Nosso Senhor
E vuco-te-vuco, assanha o bigode
Se apruma nas bota logo se sacode
Se embrenha no mato sofrido de amor.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Poesia do sertão

Queixa de sertanejo.

Diniz Vitorino

Sou sertanejo patrão
Trago nos óio istamapdo,
Os retrato disbotado,
Dos drama do meu sertão.
Faz tempo e pra eu foi onte,
Queu vi pro riba dos monte,
As nuve fazer lençó,
Pro riba da serra iscura,
Pra se queimar na quintura,
Da brasa acesa do só.

Eu sofri do mermo jeito,
Que os conterrano sofrêro,
As mão da seca iscrevêro,
Umas tragéida im meus peito,
No fundo do meu isprito,
Juro Cuma tem iscrito,
Uns rumance doloroso,
É um histora iscrivida,
Nos livro da minha vida,
Que se apagar é custoso.

Vi o verão assassino,
Queimando a cara dos home,
O ribuliço da fome,
Nos istambo dos minino,
O vurto magro da sede,
Recostado nas parede,
Das casa veia sem gente,
Taliguá visage feia,
Zombando da dor alêia,
E fazendo medo aos vivente.

Foi lá no sertão seu moço,
Queu vi o só incarnado,
Cuma um corpo avermeiado,
Derramando sangue grosso,
Os serrote cuma uns forno,
Ingulindo os vento morno,
Que iscorregava nas grota,
E as foia mucha nos vale,
Cumo uns taco de avuale,
Que o só do verão disbota.

Foi lá que eu vi os carnêro,
Butando a língua de fora,
Morrer três, quatro pur hora,
Pur a bêra dos barrêro,
Os vira-lata pé duro,
Iscrafunchando os munturo,
Inchendo os bucho de lixo,
E os povo pobe in jijum,
Morrendo de um in um,
Do mermo jeitpo dos bicho.

Pra eu tô uvindo o choro,
Dos sertanejo valente,
Levando a puêra quente,
Nas aprecata de couro,
No ombro um saco amarrado,
E o bucho seco e ingiado,
Que nem tripa in labareda,
E os pé iscrevendo o nome,
Das quatro letra das fome,
Nos carrascá das vareda.

Me dá um nó na gaiganta,
Quando alembro dos istalo,
Que o vento dava nos talo,
Dos gaio seco das pranta,
A ventania zangada,
Iscavacando as istrada,
Trocendo as paia dos rancho,
E as galinha poedêra,
Atrás de cumê poiquêra,
Pro dibaxo dos garrancho.

Quando eu vejo aqui na praça,
Os home rico bebendo,
As muié se arremexendo,
Surrindo sem achar graça,
Maguado eu lembro da mágua,
Das sertaneja atrás d’água,
Sair dez, doze num lote,
Ir triste e vortá chorando,
Cum os bucho seco roncando,
E sem água dento dos pote.

Vocês aí in São Palo,
Trata das égua parida,
Os cavalo de currida,
Nem se parece cavalo,
É uns bicho mantiúdo,
Os couro é cumo uns viludo,
Pru causo das vitamina,
Inquanto no meu sertão,
O povo cura os pumão,
Cum rapa de crina-crina.

Seu doto vossa insolença,
Dê cum uma chave bem dura,
Três vorta nas fechadura,
Das porta da consciença,
Se num abrir todas ela,
Abra um meno uma jinela,
Pra vê meu sertão diserto,
Onde ninguém tem priguiça,
Mas os chefe da justiça,
Nunca pássaro pru perto.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Poesia Nordestina

Contraste

Pe. Antonio Tomás

Quando partimos, no verdor dos anos,
da vida pela estrada florescente,
as esperanças vão conosco à frente,
e vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,
vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice, de repente,
desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, nós enxergamos, claramente,
como a existência é rápida e falaz,
e vemos que sucede exatamente

o contrário dos tempos de rapaz:
- Os desenganos vão conosco à frente
e as esperanças vão ficando atrás.