sábado, 22 de setembro de 2012

Palavra por palavra

O pó que respiramos 
Marcos Bezerra, do Novo Jornal 


Eu acho que vi um gatinho... Na margem da estrada, no caminho de casa. Um bicho assustado como eu, bicho homem, com aquela enorme quantidade de carros, caminhões e motocicletas indo e vindo a todo momento. Escanchado numa motocicleta, vendo o chão passando em velocidade sob os meus pés, o sentimento é de quase medo. A tal sensação de liberdade, só com pista livre. Apreensão para qualquer motociclista é um bom aliado da sobrevivência. Faz você redobrar os cuidados que para-choque o veículo não tem e, aprendemos cedo, se algo atravessar à nossa frente, não há como parar. O gatinho não atravessou à minha frente. Estava perdido numa marginal da vida, a poucos metros da morte. Não sei porque o bichano foi parar naquele mundo caótico. Era um gato jovem e branco na maior parte do corpo. Mais não deu para ver porque passei por ele como todos os outros motociclistas e motoristas que iam no mesmo sentido. Estava no canteiro entre a marginal e a BR. Não sei se voltou para onde tinha vindo, ou tentou atravessar a pista. Na primeira hipótese teria alguma chance de ser bem sucedido; na segunda, a morte seria certa. Para cima e para baixo nesse meu caminho de roçado, sofro pelos bichos mortos que encontro sobre o asfalto. São vítimas de uma carnificina e nós seus algozes, em nossas máquinas de fazer correr... De fazer morrer. A pressa é nosso combustível numa corrida que, ironicamente, vai dar no fim da vida. Desconheço, se existe nunca vi, um serviço para a retirada desses animais, cujas carcaças não têm nem tempo de apodrecer, moídas que são pelos pneus dos carros. Um atrás do outro, eles vão transformando os bichinhos numa massa disforme. Quando o animal é maior, o asfalto ganha uma mancha de sangue e outra que dura mais. Prestei atenção e descobri que se trata da gordura dos bichos, brilhando macabramente quando o sol se faz a pino. Em muito pouco tempo, o que já foi um bichinho cheio de vida vira uma capa coberta de pelos. Daqui a pouco é nada. Os ossos desaparecem de tantos carros que passam por cima. Eu, que não bato bem da bola, busco e pouco encontro restos nos cantos da estrada. Parece que os bichos viram mesmo pó e, nessa forma, voltam para o altar onde foram sacrificados. Sim, a poeira que todos nós respiramos certamente tem partículas de cachorros e gatos mortos. Aparentemente, isso não faz mal à saúde. Só aos fracos do juízo, como eu, que se deixam impressionar pela carnificina e se entristecem com a paga da vida moderna. Questiono-me se a frieza do bicho homem pode chegar, um dia, ao ponto de moer um ser humano morto atropelado na estrada. E respirá-lo depois...

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